Resenha do meu livro publicada originalmente em:
http://www.correiodocidadao.com.br/guarapuava/jose-aguiar-e-suas-coisas/
Publicado em julho 21st, 2016 |
por Jornal Correio do Cidadão
José Aguiar e suas coisas
A imagem de uma santa, o calendário de oficina, o quadro da Santa
Ceia, os retratos dos parentes mortos, o crucifixo, os azulejos e até
mesmo a rachadura na parede. Pode parecer que não, mas todos esses
objetos têm uma história particular. Ou melhor, são as pessoas que dão
sentido para essas coisas utilizadas para enfeitar paredes.
Essa é, pelo menos, a perspectiva do quadrinista José Aguiar na obra
“Coisas de adornar paredes” (2016), publicada pela editora independente
Quadrinhofilia. O artista vem a Guarapuava em agosto, para participar da
GorpaCon 2016.
Com roteiro e arte do autor, o livro é dividido em histórias que se
passam em bairros conhecidos de Curitiba (PR). Apesar da localização
geográfica, a temática e a abordagem são universais, revelando
trajetórias de personagens tão comuns quanto qualquer pessoa.
A diferença está na abordagem original de Aguiar: simples e banais
objetos (as tais “coisas” do título) servem de ponto de partida para
contar uma boa história. Uma dos milhões de reproduções da famosa tela
“Santa Ceia” (pintada originalmente por Leonardo Da Vinci) é o mote de
“Santa Ceia em Santa Felicidade”, a terceira narrativa de “Coisas de
adornar paredes”.
Uma das histórias do livro é feita a partir de uma reprodução da ‘Santa Ceia’
Com uso da técnica do preto e branco, o autor constrói, na verdade,
um conto ilustrado, em que texto e desenho se combinam para narrar a
trajetória errante de João, o gerente e proprietário de uma típica
cantina italiana do famoso bairro gastronômico da capital paranaense.
Sem muita noção de arte ou decoração, o protagonista botou na parede
uma cópia do quadro de Da Vinci feita por um artesão de estrada. “Seu
pequeno pedaço de bom gosto certamente iria impressionar e atrair mais
freguesia” (p. 34), acreditava o gerente.
Mas não foi bem isso que ocorreu. Ninguém deu bola para o quadro; e os fregueses queriam apenas comer.
Os negócios começaram a dar errado para João, até que ele teve que
fechar o restaurante. No entanto, sua cópia da “Santa Ceia” seguiu com
ele… até o desfecho surreal, que o leitor deve descobrir por conta
própria (sem spoilers, aqui).
METALINGUAGEM
Após o último quadro da narrativa ilustrada “Santa Ceia em Santa
Felicidade”, o livro corta para dois personagens que nada têm a ver com a
história do gerente João.
Ou melhor, têm certa relação. Afinal, um deles é o autor do pequeno
conto (e de todas as histórias do livro); a outra personagem é a sua
leitora. Aguiar promove uma intersecção de dois tipos de narrativas na
obra, brincando com a metalinguagem. Trocando em miúdos, ele produz um
livro que discute o fazer literário.
Trabalhando em uma empresa de azulejos (outra “coisa” de enfeitar
paredes), Chico rabisca seus contos nas horas vagas, sonhando em se
tornar um escritor profissional. Sua principal leitora é Ana, que dá
palpites, sugestões e críticas em todas as histórias; além do Caio,
colega de trabalho de Chico, que contribui de alguma maneira para o
aspirante a autor.
Aguiar utiliza o trio de personagens para desnudar o processo de
criação ficcional, mostrando como algumas decisões podem alterar
completamente o desenrolar de uma história.
O autor
O curioso é que nos trechos sobre Chico, Caio e Ana o autor do livro
utiliza mais a linguagem dos quadrinhos. No entanto, na parte sobre os
contos de Chico a narrativa se aproxima mais da literatura, com trabalho
fabular em cima dos textos. Os desenhos são importantes e muito
presentes, mas só funcionam na sincronia com o recurso verbal.
ORIGENS
No posfácio ao livro, José Aguiar recorda que a gênese de “Coisas de
adornar paredes” se deu em 1999, na extinta revista independente
“Almanaque Entropya”, espaço de publicação de artistas curitibanos.
Naquela época, ele publicou duas histórias já com o título que seria
utilizado no livro de 2016. O mote era ver as coisas sob uma perspectiva
inusitada.
Com o tempo, a série ficou somente naquele material de duas décadas
atrás; mas o autor ficou com a vontade de voltar ao tema. “Mas as ideias
foram amadurecendo, cresceram e se tornaram narrativas maiores” (p.
119).
Assim, ele selecionou as que mais lhe agradavam e surgiu o lance de
costurá-las em uma obra maior, acrescentando o aspirante a escritor.
“‘Coisas de adornar paredes’ é um projeto sobre aquelas pequenas coisas
em que presto atenção quando caminho pelas ruas de Curitiba ou quando
visito a casa de alguém e me deparo com alguma sutileza que me
sensibiliza” (p. 119).
Texto: Cristiano Martinez
Fotos: Arquivo Pessoal/José Aguiar